Ontem acordei tarde, passava do meio-dia. O sol ardia em minha janela e cintilava nas lantejoulas de algumas peças de roupas espalhadas pelo chão. Levantei meio atordoada, tropecei em uma sandália plataforma, onde andaria o outro pé? Com certeza não deveria ter bebido tanto na noite anterior, mas são ossos do oficio, sem bebida não há quem suporte aquela música alta, as frases gritadas, as luzes fortes que acompanham o ritmo das músicas em meio a uma verdadeira escuridão.
Engraçado pensar que semana passada eu era uma professora recatada do ginásio. Saias compridas, cabelos em coque, blusas com golinha japonesa e magas três quartos. Tons pastéis. Sapato de salto discreto, às vezes uma sapatilha bem confortável. Adormecia por volta das onze horas, lendo romances russos, poucas vezes um nacional, e despertava todos os dias cedo. Levava uma vida regrada, dentro de todos os limites que me eram impostos pela sociedade. Não me encantava quebrar limites.
Vida muito semelhante a da secretária que fui meses antes. As roupas, o cabelo, pouca maquilagem, acordar cedo, ser recatada, contudo o salto era maior, não muito maior é verdade. E eu era mais expressiva, era calma, meio quieta, mas tinha vários amigos e saíamos sempre, íamos a restaurantes, apresentações teatrais, bares.
Foi uma época muito produtiva, talvez tão rica quanto minha experiência como atriz de teatro, embora a ‘eu’ atriz tivesse um comportamento muito semelhante a ‘eu’ que acordou ontem tropeçando em sandálias.
Os ensaios começavam sempre às dez da manhã, eu, claro, chegava de ressaca todos os dias. Ao meio dia parávamos para almoçar, eu engolia qualquer coisa rápido e tirava um cochilo nas cadeiras no fundo do teatro. Nas próximas duas horas discutíamos sobre nossas performances, quais eram os pontos fortes e os fracos de cada um, como deveríamos melhorar isso e aquilo, como seria a noite de estréia.
Festas; como festejávamos a vida. Tudo era motivo para uma noite no bar, um jantar na casa de alguém, um churrasco, um encontro, um porre.
Mas as estréias eram boas, o público aplaudia em pé, a casa vivia lotada, os ingressos esgotados, e nosso bolso vivia vazio.
Foi minha “pós” de uma graduação que fiz detrás dos picadeiros. Pois é, trabalhei anos antes por detrás dos palcos de um circo. Não era um grande circo, não era uma grande profissão, mas pagou muito bem minhas contas durante algum tempo e me rendeu um rebolado que só o circo pode ensinar.
Como disse, minha vida foi no back stage, nada de glamuroso, nada que merecesse palmas em pé. Eu limpava as jaulas dos animais, fazia contorcionismo na jaula dos jacarés, malabarismo com o esfregão na jaula dos leões, e mágica para desaparecer a sujeira da jaula dos elefantes.
Foi nessa época que aprendi a valorizar meu tempo livre, cada segundo de descanso era posto num pedestal, era o instante mais bem aproveitado do meu dia. Mas era um emprego interessante, e a trupe era muitíssimo divertida. De todos os meus afazeres, o mais chato era acordar às cinco e meia da manhã para dar um peteleco no galo cujos berrinhos se encarregavam de acordar o restante do povaréu circense.
Está certo que acordar antes do sol não era novidade para mim. Houve um tempo, quando fui freira em um convento lá no interior paulista, em que acordar cedo era dormir muito. Todos os dias acordávamos às quatro para rezarmos antes de preparar o café da manhã. A elevação do espírito nos ajudava a enfrentar melhor as desavenças do dia-a-dia e, dessa maneira, melhor auxiliarmos nossa comunidade.
Líamos a bíblia ainda em jejum, e aos domingos participávamos da missa matinal, só depois começava nosso dia de laboro.
Cuidávamos de uma creche comunitária, cada irmã ajudava de acordo com sua formação acadêmica, ou suas habilidades. Eu, graduada em pedagogia, dava aula para as crianças e planejava suas atividades extras, trabalhava principalmente em conjunto com a irmã Ana, graduada em música, e a irmã Sandra, também pedagoga.
Foram dias glorificantes. As crianças os fizeram assim, dias harmoniosos, iluminados.
No entanto, ontem, como eu dizia, acordei dançarina de uma boate, uma profissão um pouco triste, um pouco feliz, com certeza ingrata e difícil, mas, como as anteriores, de grande valia e imenso aprendizado. Isso não se discute. Não se encontra no mercado o quanto aprendi com todas as mulheres que fui.
Só que isso aconteceu ontem, pois hoje acordei e no meu quarto não havia plumas nem paetês, nem esfregões ou scripts. Olhei no espelho e a imagem refletia uma feição conhecida, era eu ali, a mesma velha e irrequieta escritora de sempre.
* escrevi pensando no filme de Domingos de Oliveira, mais que na versão original com Leila Diniz e Paulo José, na música da Rita Lee e em uma entrevista de Lygia Fagundes Telles.