segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Entre "Eu" e "Mim"

Há muitos anos raiou no céu Brasileiro uma nova estrela, era o príncipe dos salões, comparecia a todas as festas, grandiosas ou não lá estava “Eu”. “Eu” caminhava com desenvoltura pelas cidades brasileiras, entre crianças, jovens e adultos sempre o encontrávamos. “Eu” era elegante, despojado, tímido, audacioso, engraçado e sério, ás vezes de uma seriedade irritante, mas gostávamos dele, e o convidávamos para todas as nossas conversas, públicas ou particulares. Com o passar dos anos mudanças sérias aconteceram, nosso comportamento não era mais o mesmo, os vínculos de amizades verdadeiras diminuíram espantosamente, e “Eu” foi perdendo seu lugar. As crianças não queriam mais aquele grandalhão de peso em suas brincadeiras, os adolescentes o enxotavam de suas conversas “internéticas”, e apenas alguns poucos adultos continuaram a conviver com nosso companheiro de séculos.
Outro fator que influenciou nossa mudança comportamental, e consequentemente o esquecimento de “Eu”, foi a abertura ocidental aos valores orientais. Explico-me, cada vez mais nos rendemos aos valores milenares das culturas orientais, seja pelo advento da internet, que aproximou o mundo, seja pelo advento do semancol, que nos fez perceber o quão perdidos somos perante os inventores da bússola.
De qualquer maneira, relutamos, relutamos, mas nos rendemos aos encantos chineses, e vieram roupas, comida, bolsas, comida, remédios, comida, chás, comida, atividades físicas, hummm comida, enfim tantas novidades que acabamos por trocar nosso tão brasileirinho “Eu” pelos olhinhos puxados do “Mim”.
Atualmente, “Mim” comparece a todos os eventos para os quais levávamos “Eu”, e o chinesinho participa mesmo, não falha uma festa, um acontecimento qualquer, ele sempre está lá. Tudo recai sobre seus ombros, é para “Mim” fazer, para “Mim” comprar, para “Mim” lavar.
Sabe, no tempo do “Eu” as pessoas se perguntavam umas as outras como ele conseguia dar conta de tudo aquilo, alguns encontravam a resposta no tamanho robusto do rapaz, em sua descendência afro, ou no jeitinho brasileiro. Às vezes, hoje, me pergunto a mesma coisa sobre “Mim”, como tão magrinho e quieto ele consegue dar conta de tantos eventos e tudo mais, bem... vai ver esse é mais um dos segredos da medicina oriental!

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Carnaval, meu carnaval. Eu fico triste quando chega o carnaval!

Quantos de nós já ouvimos a famosa frase “no meu tempo era melhor”? No meu tempo as meninas se davam ao respeito. No meu tempo tínhamos brincadeiras dançantes, aliás, no meu tempo nós sabíamos o que era dançar, música calma, para dançar junto da moça.
Agora, há menos de uma semana, ouvi a melhor de todas, e veio assim sem mais nem menos, com uma simples resposta a uma pergunta comum, “E o carnaval? Já fez planos?”, e lá estava meu interlocutor, sentadinho, me fitando calmamente, pensou, escolheu as palavras e, finamente, respondeu que talvez ele e a esposa fossem ao clube.
E logo continuou, sempre calmo, me contando que há anos eles vão de clube em clube analisando calmamente qual deles melhor corresponde à idade do casal, afinal eles adoram carnaval, a dança, o ritmo, o suor e muito mais, visto que estamos falando de um paulistano muito do carioca.
Todavia, ainda que perdido em meio ao encantamento que a simples idéia da festa trouxe, não tardou para a frase surgir; “mas no meu tempo de moço, ainda estudante lá no Rio de Janeiro, nossa, era muito diferente”.
Não me segurei, embora imaginasse já saber a resposta, acabei prolongando a prosa e perguntei o porquê era tão diferente, seria por que as meninas eram mais recatadas, ou as danças eram melhores, verdadeiras marchinhas de carnaval? Claro, ele confirmou tudo, me confessou que as moças não se davam ao desfrute, e os casais se respeitavam mais, chegavam a se dividir no salão só para dançarem mais soltos e se reencontrar no fim da festa, “nada demais”, disse ele, “isso era carnaval”.
Contou ainda o caso de um amigo de cidade pequena que foi ao Rio sonhando com um baile “cheio de moças para ele agarrar” e completou em seguida, dessa vez nada calmo, mas com um pequeno sorriso no canto da boca, “ah, mas as moças não eram assim, elas se davam ao respeito”, disse que o tal amigo, embora muito bem avisado de que as moças rodavam de mãos em mãos apenas para dançar, se encantou com uma em especial, “não deu dez minutos meu amigo voltou com um baita bico, pois a moça não apenas o dispensou, como o fez com muita sabedoria, dizendo para o meu amigo que gostava muito de sexo, mas no momento certo e com a pessoa certa e ele (o meu amigo) não preenchia nenhum dos requisitos”,confessou orgulhoso ao confirmar a seriedade das moças de sua época.
Senti a empolgação pelo assunto e perguntei logo se era disso, dessa seriedade dos anos passados, que ele sentia mais falta. Ele pensou um pouco, os olhinhos brilhando iluminando aquele semblante ingênuo que apenas a idade pode imprimir no rosto de alguém, quando de repente soltou a resposta mais inusitada que aquela voz de avô poderia soltar:
“Ahh, o lança-perfume era muito melhor na minha época!”

domingo, 20 de janeiro de 2008

A Televisão nossa de cada dia!


As contradições puritanas são realmente interessantes. O programa "Sex in the City" seria perfeito não fosse o fato de tratarem do assunto de forma tão aberta que se esquecem das doenças envolvidas no tema. Nunca uma única camisinha foi comprada naquele programa. Nunca ninguém contraiu nenhuma doença sexualmente transmissível, nem uma porcariazinha de herpes genital, e eu duvido que alguma das quatro personagens principais se lembre de tomar a nova vacina contra HPV. Há algum tempo eles poderiam usar a desculpa de que só Vó gosta de falar de doença, e colocar um assunto de Vó num programa sobre sexo seria no mínimo um sacrilégio, acontece que as Vovózinhas transam e o número de casos de AIDS entre idosos aumenta mais do que entre jovens. Outra contradição entre diálogo e comportamento está no fato do brasileiro, que se diz tão "quente na cama" ser o campeão de acesso em sites pornôs. O título é de país do Carnaval, mulheres bonitas e fogosas, campanhas contra Aids (que aparentemente é a única doença sexualmente trasmissível por aqui, país abençoado esse, não?), tudo isso no país dos voyers. Vai ver esse voyerismo é o verdadeiro motivo da aversão a cenas de sexo na TV, a gente costuma não gostar daquilo que não conhece mesmo. Imagina os pais (adoradores da imagem e não do ato) tendo ereções na frente dos filhos, que por sua vez não entenderiam nada (não se fala de sexo na frente das crianças), as únicas que entenderiam os acontecidos e achariam tudo natural seriam as sexualmente ativas Vovózinhas.
Eis a maior das janelas que aguçam nosso voyerismo, a TV, pois a partir do momento em que nos conformamos em assistir o mundo nós também nos conformamos em assistir o Mensalão, as Anacondas, as Sangue-sugas e não fazer mais nada, afinal de contas a TV não interage e o espectador nunca vai ser o personagem principal de trama nenhuma, ele não tem falas, não tem desejos, no máximo ele bate palmas. O mais engraçado é que a TV é a única janela que tem a mesma vista independente de onde você esteja.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Canto de cicatriz

Dias atrás estava assistindo TV quando um programa especial do canal Brasil me chamou a atenção, falava-se sobre abuso sexual infantil, vim depois a descobrir que se tratava de um documentário intitulado “Canto de cicatriz”.
Alguns dados a maioria de nós já conhece, o abuso sexual infantil acontece, principalmente, contra meninas, apesar dos meninos também serem vitimas, fato que notamos cada dia mais nas notícias de pedofilia. Outro fato destacado pela reportagem foi o de a grande maioria dos abusadores serem pessoas nas quais a família confia suas crianças, chegando ao absurdo de ser o próprio pai.
Claro que por mais batidas que essas informações estejam ainda chocam e muito, entre muitas coisas pelo simples fato de serem tantos casos tão parecidos a ponto de nos perguntarmos o porquê de não acabar nunca, como sabendo de tudo, como, quando e onde acontecem, ainda assim nossas famílias são reféns dessas tragédias aguardando à mercê da sorte.
O programa mesclou relatos de garotas vítimas desses maus tratos, um poema de Celso Gutfreind, escrito pelo psicólogo infantil especialmente para o documentário, e explicações de sumidades como Moacyr Scliar e Télia Negrão, que integra a diretoria da Rede Feminista de Saúde, entre outras pessoas estudiosas do assunto e pessoas escolhidas ao acaso pelas ruas.
Das explicações “cientificas” não subtraí nada além das informações que vemos repetidas a cada reportagem sobre o assunto, das vítimas além da dor, do trauma, das palavras ásperas, em algum lugar havia muito diferente de um pedido de socorro ou de dó, era notável o orgulho pessoal de ter aos trancos e barrancos sobrevivido a tragédia e recomeçado vida nova. Das entrevistas pelas ruas talvez a resposta para a questão levantada anteriormente.
Em um programa como esse tudo é feito para causar estranhamento, impacto e quem sabe gerar alguma reação no espectador, o poema sendo declamado vagarosamente em um fundo preto, uma atriz sem reações faciais, as estatísticas dolorosas e frias na boca dos médicos entrevistados, as lágrimas nos olhos das meninas violentadas.
Tudo isso já seria mais que o suficiente para levantar qualquer questão de fundo social, no entanto o maior impacto, em minha opinião, foram as entrevistas nas ruas. A maneira como as pessoas reagiam as perguntas e, em especial, suas respostas me entristeceram bastante.
Ao serem questionadas sobre o que consideram abuso infantil todos disseram ser atos íntimos praticados com crianças pequenas, pequenas, para eles, são crianças de no máximo 12 anos. Por esses dados nós entendemos que aos 13 anos a menina já responde como mulher e, portanto sabe provocar um homem e buscar por relações sexuais, homem esse que provocado por uma mulher de 13 anos sente-se no direito de satisfazer seus “instintos masculinos”.
Uma mulher entrevistada pelo documentário disse que as meninas de hoje já sabem que roupa usar para provocar os homens, e depois reclamam quando os homens as atacam. Ora, pois não deveriam? Deveriam ser atacadas e permanecerem quietas? Afinal, só se configura abuso quando a pessoa não tem discernimento de certo e errado? E as velinhas que andam sendo violentadas nas ruas escuras? Não foram violentadas pois sabiam o que estava acontecendo? Foram coniventes no ato e não deveriam, dessa maneira, reclamar do ocorrido?
E o pior de tudo isso é que foi uma mulher quem disse aquela bela frase a respeito das meninas. E não uma mulher qualquer, ela já aparentava uma certa idade, talvez fosse avó.
De qualquer forma viveu o suficiente para ver a mudança comportamental de nossas meninas e chegar àquele pensamento tão sublime, no entanto, em nenhum momento de sua vida deve ter parado para refletir a respeito do que é ser uma mulher hoje, e muito menos sobre como é ser uma pré-adolescente. Viver presa entre o infantil e o adulto, o mundo lindo cor de rosa e inocente, e o mundo sensual projetado nas revistas Teens, nos filmes feitos para essa faixa etária, nas revistas de beleza que as próprias mães carregam para dentro de casa.
Chamar a atenção não é uma mera vontade mimada, pintar os cabelos, ter roupas que modelem o bumbum, sapatos de salto, redução ou aumento de seio, a busca pela perfeição plástica, coisas que vão muito além de simplesmente se destacar perante um olhar masculino, e sim desaparecer diante de todos os olhares, ser natural em um mundo que lhe é novo, agir como se pertencesse ao lugar, brincar de ser adulta de vez.
Todos somos assim, queremos parecer que entendemos o jogo, que lemos o jornal, que acordamos maquiladas como as atrizes das novelas, que nossos corpos nasceram esculpidos, queremos ser “naturalmente” magras, como se a magreza caísse bem para todas nós.
E é engraçado que cada uma de nós se sinta responsável pelas próprias escolhas, capazes de fazê-las e terrivelmente irritadas quando alguém nos confronta dizendo que não deveríamos fazer tal e tal coisa.
Engraçado como todas nos entendemos e buscamos coisas em comum, mas somos as primeiras a dizer que uma menina, usufruindo de seu direito de vestir aquilo que bem quiser e de copiar a moda adulta que bem entender, direito, por sinal, concedido por nós mulheres, está provocando o “instinto masculino” e, portanto não pode reclamar dos abusos sofridos.
Muito mais triste que um homem se julgar no direito de quebrar todas as regras do bom convívio social, e atacar feito um animal qualquer pessoa que seja, em especial, nesse artigo, uma menina, muito pior que isso é uma mulher justificar o ato grotesco desse homem e culpar a menina por isso.
É esse pensamento pequeno e inaceitável de uma mulher contra outra que impede a diminuição dos casos de assédio sexual, prostituição e abuso infantil, uma vez que são esses pensamentos medíocres os responsáveis pelo silêncio de nossas vítimas, como se fosse vergonhoso ser atacada, e fosse normal, mera conseqüência instintiva atacar um inocente.

Poema recitado no documentário:
Canção para a menina maltratada - Celso Gutfreind

Não, não será com métrica nem com rima.
Uma coisa sem nome violentou uma menina.
Ação barata sem a pratado pensamento o ouro do sentimento o dia da empatia.
Noite.Uma coisa. Não era o lobo nem o ogro nem a bruxa,
era a fúria do real sem o carinho do símbolo.
Stop, a poesia parou.Ou foi a humanidade?
Stop nada, a menina sente e segue com métrica, rima, graça, vida.
Onde está tua vitória, ignomínia?
Uma prosa continua poética como era saltitante o bastante para não perder a poesia.
A coisa (homem?) é punida como um lobo no conto de verdade.
E imprime-se um nome na ignomínia.
A menina liberta expressa ri e chora, volta a ser qualquer (única) menina.
Pronta para a métrica pronta para a rima pronta para a vida(canto de cicatriz),
pronta para o amor a dois,à espera, suave, escolhido.