sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Todas as mulheres do mundo!

Ontem acordei tarde, passava do meio-dia. O sol ardia em minha janela e cintilava nas lantejoulas de algumas peças de roupas espalhadas pelo chão. Levantei meio atordoada, tropecei em uma sandália plataforma, onde andaria o outro pé? Com certeza não deveria ter bebido tanto na noite anterior, mas são ossos do oficio, sem bebida não há quem suporte aquela música alta, as frases gritadas, as luzes fortes que acompanham o ritmo das músicas em meio a uma verdadeira escuridão.
Engraçado pensar que semana passada eu era uma professora recatada do ginásio. Saias compridas, cabelos em coque, blusas com golinha japonesa e magas três quartos. Tons pastéis. Sapato de salto discreto, às vezes uma sapatilha bem confortável. Adormecia por volta das onze horas, lendo romances russos, poucas vezes um nacional, e despertava todos os dias cedo. Levava uma vida regrada, dentro de todos os limites que me eram impostos pela sociedade. Não me encantava quebrar limites.
Vida muito semelhante a da secretária que fui meses antes. As roupas, o cabelo, pouca maquilagem, acordar cedo, ser recatada, contudo o salto era maior, não muito maior é verdade. E eu era mais expressiva, era calma, meio quieta, mas tinha vários amigos e saíamos sempre, íamos a restaurantes, apresentações teatrais, bares.
Foi uma época muito produtiva, talvez tão rica quanto minha experiência como atriz de teatro, embora a ‘eu’ atriz tivesse um comportamento muito semelhante a ‘eu’ que acordou ontem tropeçando em sandálias.
Os ensaios começavam sempre às dez da manhã, eu, claro, chegava de ressaca todos os dias. Ao meio dia parávamos para almoçar, eu engolia qualquer coisa rápido e tirava um cochilo nas cadeiras no fundo do teatro. Nas próximas duas horas discutíamos sobre nossas performances, quais eram os pontos fortes e os fracos de cada um, como deveríamos melhorar isso e aquilo, como seria a noite de estréia.
Festas; como festejávamos a vida. Tudo era motivo para uma noite no bar, um jantar na casa de alguém, um churrasco, um encontro, um porre.
Mas as estréias eram boas, o público aplaudia em pé, a casa vivia lotada, os ingressos esgotados, e nosso bolso vivia vazio.
Foi minha “pós” de uma graduação que fiz detrás dos picadeiros. Pois é, trabalhei anos antes por detrás dos palcos de um circo. Não era um grande circo, não era uma grande profissão, mas pagou muito bem minhas contas durante algum tempo e me rendeu um rebolado que só o circo pode ensinar.
Como disse, minha vida foi no back stage, nada de glamuroso, nada que merecesse palmas em pé. Eu limpava as jaulas dos animais, fazia contorcionismo na jaula dos jacarés, malabarismo com o esfregão na jaula dos leões, e mágica para desaparecer a sujeira da jaula dos elefantes.
Foi nessa época que aprendi a valorizar meu tempo livre, cada segundo de descanso era posto num pedestal, era o instante mais bem aproveitado do meu dia. Mas era um emprego interessante, e a trupe era muitíssimo divertida. De todos os meus afazeres, o mais chato era acordar às cinco e meia da manhã para dar um peteleco no galo cujos berrinhos se encarregavam de acordar o restante do povaréu circense.
Está certo que acordar antes do sol não era novidade para mim. Houve um tempo, quando fui freira em um convento lá no interior paulista, em que acordar cedo era dormir muito. Todos os dias acordávamos às quatro para rezarmos antes de preparar o café da manhã. A elevação do espírito nos ajudava a enfrentar melhor as desavenças do dia-a-dia e, dessa maneira, melhor auxiliarmos nossa comunidade.
Líamos a bíblia ainda em jejum, e aos domingos participávamos da missa matinal, só depois começava nosso dia de laboro.
Cuidávamos de uma creche comunitária, cada irmã ajudava de acordo com sua formação acadêmica, ou suas habilidades. Eu, graduada em pedagogia, dava aula para as crianças e planejava suas atividades extras, trabalhava principalmente em conjunto com a irmã Ana, graduada em música, e a irmã Sandra, também pedagoga.
Foram dias glorificantes. As crianças os fizeram assim, dias harmoniosos, iluminados.
No entanto, ontem, como eu dizia, acordei dançarina de uma boate, uma profissão um pouco triste, um pouco feliz, com certeza ingrata e difícil, mas, como as anteriores, de grande valia e imenso aprendizado. Isso não se discute. Não se encontra no mercado o quanto aprendi com todas as mulheres que fui.
Só que isso aconteceu ontem, pois hoje acordei e no meu quarto não havia plumas nem paetês, nem esfregões ou scripts. Olhei no espelho e a imagem refletia uma feição conhecida, era eu ali, a mesma velha e irrequieta escritora de sempre.

* escrevi pensando no filme de Domingos de Oliveira, mais que na versão original com Leila Diniz e Paulo José, na música da Rita Lee e em uma entrevista de Lygia Fagundes Telles.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

No elevador!

Segunda-feira, sete da manhã. O elevador pára no primeiro andar, uma bela moça entra e educadamente deseja um bom dia ao ascensorista, o qual gentilmente devolve o sorriso e o “bom dia”.
_ Garagem, por favor. – pede a moça, que ao chegar ao seu destino despede-se e agradece os serviços do ascensorista _ Obrigada, tenha um ótimo dia de trabalho!
O elevador volta ao térreo. Ao longe o ascensorista observa uma figura gorducha, caminhando a passos longos, cabelo penteado para trás, pasta na mão, e ...
_ Essa não! – pensou o ascensorista assim que reconheceu a figura, e disse a si mesmo _ Lá vem a mesma piadinha sem graça de todos os dias.
E assim que chegou próximo o suficiente para ser ouvido, embora não em tom baixo, o rapaz bonachão grita:
_ E aí Seu Zé, firmeza?
Seu Zé respondeu com a educação de costume:
_ Tudo Bom, e com o senhor?
E conforme ia entrando no elevador o rapaz soltou a piadinha que acompanha a relação dos dois:
_ E ai Seu Zé, pronto pra subir na vida? Vamo lá pro catorze.
_ Sim senhor! – responde com um risinho apenas para manter a amizade.
Ao chegar ao catorze o rapaz se despede e entra em uma porta de vidro muito elegante onde trabalha há alguns anos já.
O dia de Seu Zé passa assim, entre “obrigados” e “bons dias” com raros momentos de descanso. Em um desses momentos reclamou a si próprio:
_ Poxa vida! Ninguém me pergunta algo descente nesse elevador, e eu tenho tanto a falar. Nunca pedem minha opinião sobre algo que passou no jornal, agem como se eu fosse uma das portas dessa caixa de metal, eu apenas subo e desço.
Ora bolas – continuou- eu leio, ouço música, e música boa, muito melhor que essas porcarias que tocam aqui o dia todo, eu saio aos sábados, vejo filmes, tenho muito mais a dizer que simples “sim senhor!”.
Confabulou sozinho durante alguns minutos até um rapaz distinto o arrancar de seus sonhos:
_ Boa tarde, como vai o senhor? – perguntou o rapaz.
_ Muito bem, obrigado. – respondeu educadamente ao rapaz, celebrando por dentro a mudança de repertório, imaginado que talvez naquele instante fosse finalmente travar uma conversa interessante. _ E o senhor? – perguntou ao moço – Como vai?
_ Muito bem, obrigado. Eu gostaria de ir ao décimo sétimo andar, por favor.
_ Sim senhor!
_ Diga-me – começou o jovem, enquanto Seu Zé mal podia conter a alegria que transbordava em seu olhar, sua imaginação fervilhava só de pensar qual seria o assunto abordado, seria sobre o incêndio na Alemanha? “Culposo, claro!” pensou, ou seria sobre o Rally Dakar? “É, na Argentina eu vi, estranho não?”, ou seria ainda sobre a redução da jornada de trabalho? “Ah, precisa né? A gente trabalha muito! O senhor não acha que merece um descansinho a mais?”.
Seu Zé parou de sonhar por um segundo, respirou fundo e esperou o assunto vir.
_ Quem o senhor acha que vai ganhar esse Big Brother?
_ Tenha um bom dia, respondeu Seu Zé radiante com a chegada do décimo sétimo andar.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Ser mulher é pra descer do paraíso!

Começo de ano e as formaturas rolam soltas. E ainda que contando com desistentes, aumento anual de meros conhecidos, e amigos que preferiram ir para a Europa, não adianta, a gente sempre é amigo de pelo menos um formando!
E com tantos chapéus voando pelos ares, tantas faixas, gritaria, corneta, papel colorido caindo do céu, além disso, temos a festa. A tão elegante e tradicional festa que consome algumas horas até das pessoas menos festeiras. Não há como fugir!
Lembro-me de um comentário solto no fundo da sala, pobre do menino que o soltou, de que seria mais proveitoso fazer um “baita churrasco”, “churrasco?” perguntou indignada uma voz feminina, “churrasco você faz domingo, essa é a noite mais importante das nossas vidas!” completou a mesma voz.
Logo após esse comentário não me contive em pensar que essa voz feminina uma dia se casaria, compraria sua primeira casa, teria seu primeiro filho, como ela poderia estar tão certa de que aquela era a noite mais importante de sua vida?
Não consegui também deixar de lembrar das antigas formaturas que fui, semanas procurando o vestido certo, as sandálias que combinassem melhor, o melhor penteado, os acessórios, cortar os cabelos, depilar as pernas, enquanto meu irmão fez a barba e colocou a mesma roupa que usou no casamento de nossa tia, o mesmo sapato, a mesma gravata, “que injustiça”, pensei, “logo eu que ganho menos, custo mais!”.
Não faz um mês vi uma reportagem falando sobre o piso salarial feminino, finalmente as mulheres ganham o mesmo que os homens. E isso era tudo o que passava pela minha cabeça enquanto olhava seriamente de arara em arara, analisando cada etiqueta de preço e pensando “quanto vai me custar o sapato que combina com isso?”.
Pode até, aos olhos de alguns desavisados, parecer bobeira uma preocupação dessas, no entanto me corroia o fato das mulheres não terem seu trabalho valorizado, monetariamente, como o homem e terem de se vestir muito melhor. E não falo das que insistem em usar roupas caríssimas, tratamos aqui da mulher tradicional, aquela do “dia-a-dia” mesmo, que trabalha oito horas, faz comida, lava a louça, busca o filho na escola, ajuda a fazer tarefa. Aquela que ao se dar o luxo de contratar uma ajudante, alguém só para lavar o banheiro e passar as camisas do marido, ainda agüenta o olhar de desagrado vindo por de trás da lata de cerveja sentada no sofá.
Quanto custa para essa mulher aí de cima ir para a academia, por exemplo? Ela precisa de calça nova, e uma blusinha, que ela vai alternar com as velhas guardadas no guarda-roupa. E o homem? Ele vai com o mesmo par de shorts que usa em casa aos domingos, uma única camiseta basta, e ninguém vai ousar chama-lo de desleixado. Aliás, os shorts são os mesmos para ir à piscina, já a mulher precisa de biquínis, caros pela própria natureza. Pois então, não te soa injusto ganharmos menos?
E tudo isso passava como um filminho enquanto lembrava dos vestidos comprados, roupas caras que não posso me dar ao desfrute de repetir. Bem, talvez eu reclame em nome de mulheres que ainda não fizeram as contas entre o quanto o mercado paga por sua mão de obra, e o quanto ele mesmo exige em gastos, afinal o homem escolheu o “churrascão” sem pompas, vestidos longos, arranjos de mesa, mas com muita comida e diversão, enquanto a mulher fez questão de fazer de sua formatura a noite mais importante de sua vida.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

“Esperteza, Paciência, Lealdade, Teimosia, e mais dia menos dia a lei da selva vai mudar"

O melhor amigo do bicho é o bicho! Quem já viu, ao vivo ou pela TV, sabe perfeitamente de qual musical infantil vamos tratar. O musical “Os Saltimbancos”, baseado nos contos dos irmãos Grimm, abrasileirado pelas vozes de cantoras como Miúcha e Nara Leão, e pela imaginação de Chico Buarque.
Muitos de nós já cantarolamos algumas dessas inocentes músicas infantis, certo? Bom, pelo menos até a parte do cantarolamos é muito provável que a afirmação esteja correta, contudo, inocentes e infantis até que ponto?
Todos já ouvimos falar de George Orwell, o literato de origem indiana autor do célebre 1984, obra “criadora” do personagem, em adaptações nem tão célebres assim, Big Brother. Além dessa criação, Orwell foi responsável por outra obra mais antiga, embora menos conhecida, de tamanha importância; “A revolução dos bichos”, inspiradora de Chico Buarque em sua história infantil.
As duas narrativas tratam, por meio de metáforas e alegorias, de problemas relacionados a quaisquer países, sejam capitalistas ou socialistas, industrializados ou emergentes; a questão que segue pouco tem a ver com países pobres ou ricos, trata-se de fato da nossa subordinação cega ao estado.
Nas palavras de Buarque segue o aviso de que os bichos um dia virarão fera, nas de Orwell segue a revolução liderada pelos porcos; nas melodias de Buarque a esperança impressa na voz do burro ao dizer que bicharada unida pode vencer qualquer barão, basta saberem respeitar e administrar suas qualidades individuais, Orwell, por sua vez, trata do problema com frieza britânica ao descrever a respeito dos deslizes capazes de acontecer em uma sociedade teoricamente igualitária.
Mas não há como negar, ambos são fluídos, leves, de fácil compreensão, capazes de te encantar, provocar sonhos com momentos melhores, posto carregarem consigo mensagens de luta, união e perseverança das quais esquecemos assim que tomamos as rédeas de nossas vidas.
Como no livro de Orwell, tão logo nos tornamos senhores de nós mesmos, viramos “porcos” e começamos a negociar coisas antes inegociáveis, somos os barões dos saltimbancos.
De repente o coletivo não mais importa, e até nossas revoluções aguardamos que alguém as faça, afinal, quantos deputados deverão furar pedágios para entendermos que a briga também é nossa? Será que somos tão teleguiados pelo estado que até um protesto contra leis abusivas deve partir do legislativo? Decida-se, ou você é um burro ou um porco!

Todos Juntos - Os Saltimbancos (trecho)

“Esperteza, Paciência
Lealdade, Teimosia
E mais dia menos dia
A lei da selva vai mudar
Todos juntos somos fortes
Somos flecha e somos arco
Todos nós no mesmo barco
Não há nada pra temer
- Ao meu lado há um amigo
que é preciso proteger ..."