Dias atrás estava assistindo TV quando um programa especial do canal Brasil me chamou a atenção, falava-se sobre abuso sexual infantil, vim depois a descobrir que se tratava de um documentário intitulado “Canto de cicatriz”.
Alguns dados a maioria de nós já conhece, o abuso sexual infantil acontece, principalmente, contra meninas, apesar dos meninos também serem vitimas, fato que notamos cada dia mais nas notícias de pedofilia. Outro fato destacado pela reportagem foi o de a grande maioria dos abusadores serem pessoas nas quais a família confia suas crianças, chegando ao absurdo de ser o próprio pai.
Claro que por mais batidas que essas informações estejam ainda chocam e muito, entre muitas coisas pelo simples fato de serem tantos casos tão parecidos a ponto de nos perguntarmos o porquê de não acabar nunca, como sabendo de tudo, como, quando e onde acontecem, ainda assim nossas famílias são reféns dessas tragédias aguardando à mercê da sorte.
O programa mesclou relatos de garotas vítimas desses maus tratos, um poema de Celso Gutfreind, escrito pelo psicólogo infantil especialmente para o documentário, e explicações de sumidades como Moacyr Scliar e Télia Negrão, que integra a diretoria da Rede Feminista de Saúde, entre outras pessoas estudiosas do assunto e pessoas escolhidas ao acaso pelas ruas.
Das explicações “cientificas” não subtraí nada além das informações que vemos repetidas a cada reportagem sobre o assunto, das vítimas além da dor, do trauma, das palavras ásperas, em algum lugar havia muito diferente de um pedido de socorro ou de dó, era notável o orgulho pessoal de ter aos trancos e barrancos sobrevivido a tragédia e recomeçado vida nova. Das entrevistas pelas ruas talvez a resposta para a questão levantada anteriormente.
Em um programa como esse tudo é feito para causar estranhamento, impacto e quem sabe gerar alguma reação no espectador, o poema sendo declamado vagarosamente em um fundo preto, uma atriz sem reações faciais, as estatísticas dolorosas e frias na boca dos médicos entrevistados, as lágrimas nos olhos das meninas violentadas.
Tudo isso já seria mais que o suficiente para levantar qualquer questão de fundo social, no entanto o maior impacto, em minha opinião, foram as entrevistas nas ruas. A maneira como as pessoas reagiam as perguntas e, em especial, suas respostas me entristeceram bastante.
Ao serem questionadas sobre o que consideram abuso infantil todos disseram ser atos íntimos praticados com crianças pequenas, pequenas, para eles, são crianças de no máximo 12 anos. Por esses dados nós entendemos que aos 13 anos a menina já responde como mulher e, portanto sabe provocar um homem e buscar por relações sexuais, homem esse que provocado por uma mulher de 13 anos sente-se no direito de satisfazer seus “instintos masculinos”.
Uma mulher entrevistada pelo documentário disse que as meninas de hoje já sabem que roupa usar para provocar os homens, e depois reclamam quando os homens as atacam. Ora, pois não deveriam? Deveriam ser atacadas e permanecerem quietas? Afinal, só se configura abuso quando a pessoa não tem discernimento de certo e errado? E as velinhas que andam sendo violentadas nas ruas escuras? Não foram violentadas pois sabiam o que estava acontecendo? Foram coniventes no ato e não deveriam, dessa maneira, reclamar do ocorrido?
E o pior de tudo isso é que foi uma mulher quem disse aquela bela frase a respeito das meninas. E não uma mulher qualquer, ela já aparentava uma certa idade, talvez fosse avó.
De qualquer forma viveu o suficiente para ver a mudança comportamental de nossas meninas e chegar àquele pensamento tão sublime, no entanto, em nenhum momento de sua vida deve ter parado para refletir a respeito do que é ser uma mulher hoje, e muito menos sobre como é ser uma pré-adolescente. Viver presa entre o infantil e o adulto, o mundo lindo cor de rosa e inocente, e o mundo sensual projetado nas revistas Teens, nos filmes feitos para essa faixa etária, nas revistas de beleza que as próprias mães carregam para dentro de casa.
Chamar a atenção não é uma mera vontade mimada, pintar os cabelos, ter roupas que modelem o bumbum, sapatos de salto, redução ou aumento de seio, a busca pela perfeição plástica, coisas que vão muito além de simplesmente se destacar perante um olhar masculino, e sim desaparecer diante de todos os olhares, ser natural em um mundo que lhe é novo, agir como se pertencesse ao lugar, brincar de ser adulta de vez.
Todos somos assim, queremos parecer que entendemos o jogo, que lemos o jornal, que acordamos maquiladas como as atrizes das novelas, que nossos corpos nasceram esculpidos, queremos ser “naturalmente” magras, como se a magreza caísse bem para todas nós.
E é engraçado que cada uma de nós se sinta responsável pelas próprias escolhas, capazes de fazê-las e terrivelmente irritadas quando alguém nos confronta dizendo que não deveríamos fazer tal e tal coisa.
Engraçado como todas nos entendemos e buscamos coisas em comum, mas somos as primeiras a dizer que uma menina, usufruindo de seu direito de vestir aquilo que bem quiser e de copiar a moda adulta que bem entender, direito, por sinal, concedido por nós mulheres, está provocando o “instinto masculino” e, portanto não pode reclamar dos abusos sofridos.
Muito mais triste que um homem se julgar no direito de quebrar todas as regras do bom convívio social, e atacar feito um animal qualquer pessoa que seja, em especial, nesse artigo, uma menina, muito pior que isso é uma mulher justificar o ato grotesco desse homem e culpar a menina por isso.
É esse pensamento pequeno e inaceitável de uma mulher contra outra que impede a diminuição dos casos de assédio sexual, prostituição e abuso infantil, uma vez que são esses pensamentos medíocres os responsáveis pelo silêncio de nossas vítimas, como se fosse vergonhoso ser atacada, e fosse normal, mera conseqüência instintiva atacar um inocente.
Poema recitado no documentário:
Canção para a menina maltratada - Celso Gutfreind
Não, não será com métrica nem com rima.
Uma coisa sem nome violentou uma menina.
Ação barata sem a pratado pensamento o ouro do sentimento o dia da empatia.
Noite.Uma coisa. Não era o lobo nem o ogro nem a bruxa,
era a fúria do real sem o carinho do símbolo.
Stop, a poesia parou.Ou foi a humanidade?
Stop nada, a menina sente e segue com métrica, rima, graça, vida.
Onde está tua vitória, ignomínia?
Uma prosa continua poética como era saltitante o bastante para não perder a poesia.
A coisa (homem?) é punida como um lobo no conto de verdade.
E imprime-se um nome na ignomínia.
A menina liberta expressa ri e chora, volta a ser qualquer (única) menina.
Pronta para a métrica pronta para a rima pronta para a vida(canto de cicatriz),
pronta para o amor a dois,à espera, suave, escolhido.